Menstruação — uma questão de
Direitos Humanos

A faceta mais importante e a mais ignorada da menstruação

Alessandra Figueiredo
9 min readMay 27, 2020

Não há pesquisa científica que me apoie nessa afirmação, porém acredito que toda mulher se lembre da primeira vez que menstruou. É algo que depois de um tempo se torna muito natural e rotineiro em nossas vidas, mas a maioria provavelmente entrou em pânico na primeira vez que viu aquela quantidade de sangue saindo dali. Menstruação ainda é um tabu atualmente e apesar de termos países com arsenais nucleares capazes de destruir o planeta, temos também países onde mulheres não têm acesso a algo tão simples quanto um absorvente.

Devo admitir que eu nunca me preocupei tanto com essa questão, (o que é meio embaraçoso pois me faz refletir sobre o tipo de feminismo que eu acredito e prego) mas fui confrontada com o assunto quando eu assisti um documentário maravilhoso, ‘Period. End of sentence’, vencedor do Oscar 2019 na categoria Melhor Documentário Curta-metragem, onde se fala sobre como a vida de mulheres numa pequena comunidade na Índia está mudando com a chegada de absorventes feitos de maneira manual pelas próprias moradoras da comunidade. Assistir ao filme me deixou extremamente desconfortável porque eu percebi que lá estava eu, no sofá da minha casa, vendo um documentário num serviço de streaming, no alto de um privilégio que é ter acesso a cultura, enquanto mulheres e meninas em vários lugares do mundo não têm acesso a produtos de higiene básicos, como absorventes!

Poster do filme “Period. End of sentence”

Assim eu entro no não tão falado mundo da menstruação, deixando de lado todas as facetas que esse assunto tem e adentrando em um desses aspectos que passam despercebidos até pelos olhares mais aguçados: como a menstruação é uma questão de direitos humanos.

Primeiramente, de acordo com a Declaração Universal de Direitos Humanos, feita pela ONU, um dos diversos direitos que qualquer pessoa tem é o acesso a saúde de qualidade, educação e trabalho digno. E é só quando falamos de países de terceiro mundo onde o acesso a esses recursos é notoriamente precário, começamos a entender como as coisas se relacionam. Meu propósito aqui não é me aprofundar na geopolítica mundial e analisar os diversos governos e contextos históricos de cada país, meu ponto aqui é focar no fato que a maior parte dos países que hoje formam o nosso querido Planeta Terra assinaram a Declaração Universal de Direitos Humanos onde diz claramente que esses governos eram responsáveis em lutar para que sua população tivesse acesso à educação, saúde de qualidade e trabalhos dignos. Apesar de ser países de terceiro mundo que nos dão uma visão mais clara sobre esse assunto, não é preciso pegar um país de pobreza absoluta pra exemplificar, eu posso falar, por exemplo, sobre o Reino Unido, onde em 2017 mais de 137,700 meninas perderam dias de aula porque elas não tinham condições de bancar os custos de seus absorventes. Você já começou a perceber como esses assuntos estão ligados? Sem as condições financeiras para comprar pacotes de absorventes essas meninas se veem obrigadas a não irem a escola para evitarem os constrangimentos de terem a roupa suja de sangue em frente de dezenas de pessoas, com isso seu desempenho escolar é afetado, e muitas delas ao decorrer do tempo acabam largando a escola e se submetendo a trabalhos de condições precárias para se sustentar. É um tipo de efeito dominó que acaba todos os anos com as perspectivas de uma vida melhor para milhares de meninas ao redor do mundo.

O direito humano à água diz que todos devem ter acesso suficiente, seguro, aceitável, fisicamente e economicamente acessível a água para uso pessoal e doméstico.

O direito humano de acesso ao saneamento diz que todos devem ter acesso físico e acessível ao saneamento, em todas as esferas da vida, que seja seguro, saudável, higiênico, social e culturalmente aceitável, que proporcione privacidade e garanta dignidade.

Bom, se você é uma pessoa que menstrua deve saber o quão importante é a higiene pessoal durante esse período, não só dentro de casa, mas, principalmente, fora dela, que é onde passamos a maior parte dos nossos dias. Agora imagine que na sua escola e/ou trabalho não haja instalações adequadas para a manutenção dessa higiene; que essas instalações sejam precárias, que falte segurança, privacidade, conforto, que não haja água. Desconfortável, não é? Pois essa é a realidade de milhares, senão milhões,
de meninas e mulheres ao redor do mundo.

Imagem: cortesia da UNICEF

De um jeito mais formal definimos essas condições como ‘ambiente escolar hostil para meninas’¹ou seja:

1. Ambientes escolares em que há uma falta completa de latrinas (palavra bonita para vasos sanitários) ou quando as latrinas são inadequadas em número, qualidade, design, segurança e privacidade, incluindo as fechaduras no interior das portas;
2. Ambientes escolares nos quais há água (potável) insuficiente disponível nas proximidades das latrinas, e/ou a água não está disponível dentro das latrinas para proporcionar privacidade para lavar as mãos e lavar as manchas de uniformes ou outras roupas escolares;
3. Ambientes escolares que carecem de mecanismos adequados para o descarte de materiais sanitários usados, incluindo lixeiras dentro de baias de latrinas, e um local para queimar materiais sanitários usados no final de cada dia escolar, como incinerador ou cova.

Como podemos ver um ambiente escolar hostil é baseado em um ambiente onde as questões de água e saneamento são precárias ou inexistentes, e é claro que esses ambientes afetam a todos, mas é preciso analisar como esses ambientes afetam principalmente meninas e as professores mulheres dessas escolas. Em um ambiente onde não é possível a manutenção da higiene pessoal, meninas vão se sentir desencorajadas a irem à escola quando elas estiverem em seu período menstrual, consequentemente isso afetará seus desempenhos escolares. Além de afetar a educação que essas garotas recebem, é preciso olhar também para a questão do saneamento básico e da saúde social como um todo. Na maior parte dos lugares onde escolas não possuem estruturas adequadas para a higiene pessoal, esse cenário se repete em casa; onde o descarte dos materiais higiênicos é feito de forma inadequada, muitas vezes jogados a céu aberto, em valões e córregos, onde a
contaminação e propagação de doenças são mais propícias.

Se pararmos para pensar, saúde e educação são dois temas que andam de mãos dadas. Além do acesso a serviços de saúde de qualidade e à medicamentos, é necessário que os indivíduos recebam educação básica sobre esses assuntos na escola, para prolongar o bem-estar. De acordo com a ONU, a definição de direito à saúde também inclui o acesso a informações educacionais relacionadas a saúde sexual e reprodutiva, isso em poucas palavras significa: educação sexual; que ao contrário do que muitos pensam não é ensinar crianças a serem promiscuas, mas sim, a conhecerem o seu próprio corpo, aprenderem sobre processos biológicos naturais que ocorrem, incluindo a menstruação, desmentir mitos que são perpetuados erroneamente de geração a geração, prevenir gravidez precoce e disseminação de DST, entre diversas outras coisas.

De certo, a maior parte das meninas de hoje não sabiam o que era menstruação antes disso acontecer com elas, eu mesma lembro que surtei quando isso aconteceu comigo pela primeira vez, achando que eu estava morrendo pela quantidade de sangue saindo de mim; hoje em dia é uma história que me faz rir, mas olhando isso de uma forma mais séria, não tem graça. Milhares de meninas passam pela mesma situação que poderia ser facilmente evitada caso o assunto fosse abordado na escola desde cedo, e provavelmente a maior parte dessas meninas vão passar anos e anos apenas com as informações que elas buscaram com suas mães e avós, que dê certo são envoltas de mitos e preconceitos perpetuados pelo tempo e pela ignorância.

Mitos são extremamente prejudiciais para o desenvolvimento de meninas jovens pois a maioria deles são nocivos, e em diversas comunidades essas crenças são levadas a extremos. Como por exemplo na Uganda, onde em algumas comunidades mulheres e meninas são impedidas de interagirem com homens pois o sangue da menstruação é considerado ‘sujo’. Também são proibidas de cozinharem ou de realizar qualquer tarefa doméstica pois eles acreditam que as pessoas que comerem as refeições ou utilizarem a casa serão ‘amaldiçoados’. Esses mitos parecem absurdos para mim, mas veja bem, eu tive a oportunidade de continuar meus estudos desde jovem, terminei meu segundo grau, hoje em dia curso o ensino superior, tenho acesso a todo tipo de informação, então eu sei que não há nada de errado em menstruar e que mulheres no período menstrual não amaldiçoam nada, porém olhando para uma comunidade na Uganda, um país pobre, onde os índices de educação são baixos, e a maior parte das informações sobre ciclo menstrual, que lembrem-se ainda é um tabu em países de primeiro mundo, são repassadas de geração em geração, carregando crenças de décadas atrás, não parece tão absurdo assim. Desse jeito, a auto estima dessas meninas são afetadas pois elas são forçadas a acreditarem que existe algo de errado com elas.

Em diversos países os professores nunca falam em sala de aula sobre menstruação ou qualquer outro tema relacionado a fisiologia das mulheres. Isto ocorre por diversas razões, a maior delas sendo o fato que a maioria dos professores nesses lugares são homens e se sentem desconfortáveis em abordar tal assunto. Talvez o segundo maior motivo seja que as escolas cortem do cronograma aulas de biologia sobre esse tema. Educação não é apenas um direito, é uma forma de empoderamento, principalmente o feminino. É comprovado que meninas que continuam na escola por mais tempo são associadas a uma redução de mortalidade materna, aumento das taxas de contracepção e vacinação infantil, diminuição das taxas de HIV e benefícios econômicos.

Como mencionado anteriormente, a falta de saneamento adequado causa consequências diretas na educação de meninas ao redor do mundo. Talvez essa seja a principal consequência na educação dessas jovens mulheres, porém em muitas sociedades quando uma menina menstrua pela primeira vez é comum associarem a ela uma maturidade sexual o que muitas vezes leva a casamentos forçados com homens geralmente muito mais velhos, o que também levam muitas delas a largarem a escola. Mesmo que essas crenças estejam enraizadas em muitas comunidades, é preciso que o Estado tenha consciência de que esse tipo de comportamento afeta não só a vida pessoal dessas meninas, mas a sociedade como um todo; lógico que a teoria é muito mais fácil que a prática, mas se nada for feito, nada será mudado.

Eu poderia entrar em detalhes na questão de trabalho, de igualdade de gênero, e outros assuntos, mas então eu começaria a me repetir pois quando paramos pra analisar esses aspectos vemos que todos giram em torno da mesma questão: a falta de acesso a saneamento, a materiais de higiene pessoal, a educação de qualidade e a informação prejudica todas as esferas da vida de meninas e mulheres, interferindo diretamente nos direitos humanos que essas meninas e mulheres têm, principalmente o direito a educação, que é a base de tudo.

“Educação como um direito humano fundamental é essencial para o exercício de todos os outros direitos humanos. A educação promove liberdade individual e contribui definitivamente para o empoderamento mais amplo da criança, para o bem-estar e o desenvolvimento, garantindo que estejam equipadas para entender e reivindicar seus direitos ao longo da vida.” — Nações Unidas, escritório brasileiro.

Kaila Bohler

Uma alternativa para um dos produtos de higiene pessoal indispensável para mulheres é o absorvente de baixo custo, pois em muitos países pobres a renda diária dos provedores das famílias são menores que os preços de pacotes de absorventes, e o custo de transporte também é mínimo pois esses absorventes são feitos nas próprias comunidades; além da perspectiva econômica, também tem vantagens ambientais pois esses absorventes são feitos de materiais biodegradáveis que quando são descartados na natureza são decompostos mais rapidamente. Porém ainda é um impedimento fazer com que essas ideias cheguem até os locais necessitados, é preciso que gente com a capacidade de ensinar de forma clara e coesa vá até essas comunidades, é preciso de material para produzir, de pessoas realmente engajadas pra que isso se torne uma realidade; e principalmente, é preciso que o Estado dê o apoio que essas meninas e mulheres precisem, que ele invista mais na saúde, educação e amparo de seus cidadãos, só assim é possível uma perspectiva de melhora.

Concluo pontuando que mesmo que não possamos quebrar tabus milenares só com algumas palavras ou com algum protesto, pequenas ações no nosso dia-a-dia fazem sim a diferença, devemos diariamente ajudar a quebrar os tabus sobre a menstruação, seja falando mais sobre o assunto, educando uma menina, conversando sobre com colegas homens, apoiando campanhas sobre o assunto na internet/vida real, etc., qualquer ação, por menor que seja, faz a diferença. É com passos pequenos que conquistamos o mundo.

Dia 28 de Maio é o Dia da Higiene Pessoal, conheça mais sobre o assunto na página: MHDay.

Fontes para coleta de dados: MHDay, #periodpositive

¹ Definição baseada em diversos artigos científicos sobre o assunto, mas principalmente este aqui.

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Alessandra Figueiredo

Storyteller, aspiring to be many things. My life is a mess. | I write in English and/or Portuguese. she/they